segunda-feira, abril 03, 2006

Acordar

O despertador ainda não tocou mas eu já estou a ouvir a vizinha de baixo a levantar as persianas. Depois de bater com força os estores, vai à casa de banho e puxa o autoclismo. Toma banho durante meia hora e, provavelmente depois de tomar o pequeno almoço, sai do prédio. O trinco da fechadura ouve-se em todos os andares. Acabei de ouvir a porta a bater.
Cá no prédio damo-nos todos bem. Ou melhor, decidimos tomar todas as decisões por unanimidade. Se um de nós não estiver satisfeito, os outros aceitam. Tem resultado até agora porque não há conflito de interesses, mas é óbvio que esta não será uma paz duradoura.
Agora é a outra vizinha que acorda e abre a persiana. Hoje acordei cedo e não consigo voltar a adormecer.
Morar num apartamento implica partilhar hábitos íntimos que até chegam a ser assustadores. Eu não quero, mas sou obrigada a conhecer os passos de quem entra e sai, de quem puxa o autoclismo, de quem demora mais ou menos tempo a tomar banho. Vivemos em comunidade, mas fingimos distância uns dos outros, dando o espaço essencial para viver em paz. Dizemos "Bom dia", trocamos dois dedos de conversa, e vamos à nossa vida. Mas sabemos que a vizinha nunca põe música aos altos berros e gosta de lençóis cor-de-rosa.
Cá no prédio só vivem mulheres. Excepto eu e o N. que somos o único casal representado. Nas reuniões de condomínio, que são feitas em casa do administrador, nunca há discussões. A não ser que esteja presente alguém que não faz parte desta comunidade improvisada. Como o proprietário do restaurante que insiste em gabar-se da sua inteligência, menosprezando a dos outros. Às vezes, como hoje, só queria ter sono outra vez para não ouvir a vida das minhas vizinhas.

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